Fernando Gustavo Knoerr*
No conceito clássico da ciência política liberal, o Estado nasce a partir do momento em que os indivíduos renunciam às suas liberdades. O Estado as recebe e lhes dá limites, devolvendo-as, agora limitadas, aos indivíduos. Liberdades limitadas tornam-se direitos. O Estado assim passa a reconhecer direitos aos indivíduos, definido espaços de atuação privada que, se mantidos dentro dos limites impostos pela lei, são impenetráveis pelo próprio Estado.
Nascem assim as liberdades individuais como espaço de proteção da esfera privada, a ser respeitado pelo Estado e pelos próprios indivíduos entre si.
A introdução histórico-política presta-se à contextualização do tema, afinal é natural e quase intuitivo interrogar porque razão o Estado busca ingressar na gestão da vida privada, proibindo a comercialização de bebidas alcoólicas em estabelecimentos situados às margens das rodovias ao mesmo tempo em que a Constituição tutela a livre iniciativa comercial. Há aparente afronta.
A dúvida foi leva à apreciação do Supremo Tribunal Federal mediante o protocolo, pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento – ABRASEL, da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4103, questionando o disposto pela chamada Lei Seca (Lei 11.705/08), que, no artigo 2º, § 1º, veda a comercialização de bebidas alcoólicas, em varejo ou para consumo local, por estabelecimentos situados em terrenos contíguos à faixa de domínio com acesso direto à rodovia, sob pena de multa de R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais).
Na petição que levou ao STF, a ABRASEL afirma que “tratava-se de fato corriqueiro no comportamento humano tomar um ou dois copos de chope ou taça de vinho. Desde a antiguidade clássica até os dias atuais, a humanidade sempre apreciou bebidas alcoólicas, sendo o seu comércio um setor importantíssimo da atividade econômica para o Brasil, com milhares de empreendedores e empregados, tendo sido sempre estimulado pelos diversos governos.”
Apesar destes argumentos, aos quais até se pode acrescentar que a falta de adequada conservação das rodovias também colabora para o aumento do número de acidentes e mortes no trânsito, não se pode fechar os olhos à realidade levantada pelas estatísticas da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), constatando que mais de 1 milhão de pessoas morrem no mundo em decorrência de acidentes de trânsito causados pelo uso abusivo de bebidas alcoólicas. No Brasil, 35 mil pessoas morrem nas estradas todos os anos devido ao mesmo motivo, especialmente nos fins de semana e feriados.
Pesquisa realizada pelo Programa Acadêmico sobre Álcool e outras Drogas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com vítimas fatais de acidentes de trânsito, mostrou que o álcool estava presente em cerca de 75% dos casos e que, embora o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estipule o índice de 0,6 grama como limite máximo permitido de concentração de álcool por litro de sangue para caracterizar infração, um número significativo das vítimas apresentava índices muito inferiores.
O estudo avaliou os testes de alcoolemia realizados por legistas do Instituto Médico Legal em 94 mortos em acidentes e detectou que apenas 11 (11,77%) não haviam ingerido bebidas alcoólicas. Nas 83 vítimas restantes (equivalente a 88,3% do total), foi detectada a presença de álcool no sangue. Desses testes positivos, em 60,2% dos casos os envolvidos apresentavam níveis de álcool por litro de sangue superiores a 0,6 grama. Mas o que mais chamou a atenção foi que 38,3% dos mortos estavam no nível permitido, com índices entre 0,1 g/l a 0,59 g/l de álcool no sangue.
As estatísticas assombram e mostram de forma enfática que o consumo de bebida alcoólica por quem se propõe a assumir a condução de um veículo automotor deve ser desestimulada ao máximo e, quando possível, reprimida.
O Ministro do STF, Luiz Fux, Relator da ADIn proposta pela ABRASEL, visando colher junto à sociedade civil informações voltadas a subsidiar o acerto da decisão a ser proferida, patrocinou nos dias 07 e 14 de maio deste ano, audiência pública que contou com a participação de várias entidades interessadas no tema, dentre as quais a Associação Brasileira de Bares e Casas Noturnas – ABRABAR, presidida por Fábio Aguayo que, na oportunidade, manifestou como certo que o Estado não pode ingressar na inviolabilidade domiciliar e proibir o consumo de bebidas alcoólicas dentro de casa, ainda que quem a consome planeje conduzir logo após um automóvel. Deve, no entanto, punir esta conduta se flagrada em via pública.
No entanto, é igualmente certo que, pelos meios que se encontram à sua disposição, o Estado tem o dever de atuar para diminuir estatísticas tão alarmantes, empregando métodos destinados a punir a direção alcoolizada. Nessa medida, ao Estado deve ser resguardada a prerrogativa de, além da aplicação da pena pecuniária (sustentando a constitucionalidade da Lei questionada pela ADIn), negar ou caçar o alvará de atuação dos estabelecimentos que comercializam bebidas alcoólicas nas margens das rodovias e que patrocinam, assim, nítido incentivo ao consumo por motoristas em trânsito.
O assunto não é novo e é constante nas pautas de discussão das causas de morte mais frequentes em todo o mundo. Nos Estados Unidos, o aumento da idade legal para beber em quase todos os estados para 21 anos é apontado como um dos recursos para a redução das mortes no trânsito. A Suécia, com a entrada na União Européia, em 1995, se viu obrigada a reduzir sua outrora rígida política de restrições à venda de álcool. O resultado foi uma retomada das mortes no trânsito de 18% em 1997 para 28% em 2002.
Como sustenta a ABRABAR, o Brasil, quinto país com o maior número de mortes no trânsito, não pode se afastar deste objetivo mundial, devendo agir para reduzir drasticamente essa estatística.
Os suecos, no entanto, continuam preocupados, tentando reduzir o índice de 178 mortes por ano em acidentes de trânsito.
*Doutor e Mestre em Direito do Estado pela UFPr. Coordenador-Geral do Curso de Direito da OPET.
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